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Crème de la Crème

 

Durante a fase aveirense do festival itinerante InJazz – Jazz em Português, um dos protagonismos coube ao Mário Laginha Trio (de que faz parte o contrabaixista Bernardo Moreira e o baterista Alexandre Frazão). O concerto, curiosamente, esteve para não se realizar, conforme confessou ao público o ainda irritado (mas sempre bem disposto) Laginha, que chegou a Aveiro em cima do momento – a escala aérea num aeroporto internacional tornar-se-ia muito mais longa do que o previsto e o atraso foi quase fatal.

Na véspera do arranque em Faro da série de concertos apoiados no seu disco absolutamente a solo Canções e Fugas (que tem como motivo inspirador a obra do compositor clássico Johann Sebastian Bach), Mário Laginha apresentou em Aveiro um concerto que incluiu já temas do seu reportório mais recente (como “Lugar Bem Situado”) através de um percurso diagonal por toda a sua obra.

Um solo de piano improvisado dá o início à actuação. Tinha começado a hora e meia de curiosidade frenética, sempre aos apalpões a terrenos virgens, numa bigamia entre o jazz e umas escapadelas por fora (sobretudo à área erudita). A mão rítmica de Laginha, apesar de maleável, pesava como chumbo; a outra mão, a melodiosa, voava leve como uma pena. Com um talento de pianista predestinado, os dedos de Laginha duplicavam-se em vinte e as suas duas mãos faziam o papel de quatro. Um homem assim só poderia devorar o charme do piano até à mais ínfima tecla.

Naquele Jogo às três tabelas, brilhavam também Bernardo Moreira e Alexandre Frazão. O primeiro tinha as mãos de um príncipe que transmitia uma profunda elegância ao seu contrabaixo. O segundo preferia saborear os tons metalizados dos pratos com toques muito, muito delicados (seria isto o antónimo de heavy metal?); e, pelo meio, não prescindia de alguns dos seus habituais brinquedos, como dois tubos de plástico utilizados como baquetas. Num dos momentos derradeiros da prestação, Frazão – depois de finada a subtil misericórdia para com tão espaçoso instrumento – quebrou a cerimónia e investiu na fase de baleamentos, massacrando os bombos com um solo magistral… Laginha tinha razão, os seus músicos eram “enormes”.

Com um à-vontade e uma abordagem flexível ao piano que a sua formação clássica e jazzística lhe permite, foi sempre Laginha a impor o tom, submetendo o triângulo criador aos seus humores, ora de empolgamento, ora de brandura.

O que se assistiu foi uma demonstração ininterrupta de sapiência, por instrumentistas que fazem da música o que querem. Com Mário Laginha no topo.

Gonçalo Palma, in Blitz, 14/03/2006